1 Janeiro 2014
Publicada por Um Dia à Vez
“Os ratos
vão-me devorar”. Vi-me obrigado a recorrer ao suborno para obter um pedaço de
papel e uma caneta, e já agora um cigarro, que não fiz mal a ninguém, acho eu.
Preciso de me escrever. Prometi à enfermeira da silhueta adelgaçante um poema.
Foi simpática e desejou-me um próspero 2014. A sua ingenuidade quase que me
comove. Sabia lá eu que estávamos no primeiro dia do ano. Gosta de poesia, ela.
No que me fui meter, eu que só sei escrever para mim.
A tia Elvira
visitou-me. “Podes mudar a tua morada para a do centro de reabilitação,
Fernando”, disse-me com ar derrotado de quem já pouco lhe é, como se dá. “Os
ratos vão-me devorar”. Desde que o meu pai morreu que escolhi esta sina. A
verdade é que prefiro o estado irreal das coisas. A mentira faz-me planar em
felicidade utópica. E quase que morro para esse momento. “Os ratos vão-me
devorar”. Disse-me que tenho estado em constante delírio na última semana.
Disse-me que profiro o teu nome, noite e dia, noite e dia. Disse-me que em
sonhos te matei. Tu és o meu delírio, de facto.
Quero
flashar em viagem. Uma cápsula. Só uma. Vá lá! Não é pedir muito, pois não? Só
quero estender o meu corpo cansado nos intervalos da erva fresca. Quero
atrever-me em visões de sonhos ainda não sonhados. “Os ratos vão-me devorar”.
Mesmo que a minha vida seja uma jangada sem rumo, de vaga em vaga, de ressaca
em ressaca. Estou a escrever-me para ti. Estou a escrever-te, enquanto pelo
corpo sinto uma tontura que me inunda o coração de medo, ausência e saudade.
Estou sempre a correr para ti sem te conseguir alcançar. Merda! O pouco
oxigénio da sala branca comeu-me o cigarro, e eu só tinha dado três passas. “Os
ratos vão-me devorar”.
Veio-me do
fundo da idade o dia em que nos conhecemos. Mas tudo isso já se passou há muito
tempo, noutro lugar e noutro corpo que não este. Escrevo-te ainda lúcido,
ignorando o facto de chegar vivo ou morto ao fim da noite. Dei por mim a
descobrir que a morte veste o mesmo número que eu. A morte. Não é mais do que
uma passagem de nós, um alívio talvez. A minha memória está cheia de bolor. A
minha memória, memória, memória. Tu apodreceste-a. “Os ratos vão-me devorar”.
Estás em
pânico também, não estás? Sobrevives na sombra da tua infância, da tua
adolescência e do medo de não conseguires por fim viver no esterco deste país.
A loucura assola-nos, e ironicamente foi ela que sempre nos uniu. Esta é a
última vez que penso em ti, num nós. Preparo-me para a última viagem às terras
imaginadas. Dizem que só lá se pode descansar da vida e da morte. Vou com as
veias empoladas. Talvez não valha a pena, mas vou. Tenho de encontrar o lugar certo,
ou o errado, para o meu amor. Ainda assim um lugar. Queres vir comigo? Aproveita-me
agora. Aproveita o meu corpo, aproveita antes que eu o devore.
Catarina Nobre, Lisboa
Texto fantástico. Espero ler mais da autora. Talvez conheça o destinatário, até, e por isso te mando um abraço, Catarina. Bom ano.
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