2 Janeiro 2014
Publicada por Um Dia à Vez
A cada dia que passa, este espaço parece sufocar-me mais. É
como se todo o branco e a pureza que lhe está associada contrastassem com toda
a obscuridade que me consome.
A enfermeira de cintura adelgaçante deu-me, hoje, mais uma
folha de papel. Antes de o fazer esteve algum tempo a fazer conversa. Com um
sorriso que lhe pareceu iluminar os olhos, disse-me que se chamava Beatriz e
perguntou-me como tinha sido o meu primeiro dia do ano. Confidenciou, com um
tom descrente que contradizia a assertividade das suas palavras, que há quem
creia que, o que acontece no primeiro dia do ano se repete ao longo de todo o
ano. No meu caso, espero que assim não seja. Se todos os dias forem como o de
ontem, os fantasmas tão reais que me seguem aparecerão a cada novo dia. Esta
realidade, se vivida dia após dia acabará por me fazer sucumbir. Não soube o
que responder à enfermeira Beatriz. Se lhe contar o que senti, o que pensei e
vivi, o mais provável é que a assuste de tal modo que a minha medicação seja aumentada
de forma que entre numa outra dimensão negra e vazia, desprovida de qualquer
coisa. Não sei se será melhor ou pior, mas Beatriz parece tão crente na vida,
nos seus ideias e na sua influência profissional, que não quero ser eu a
destruir tudo isso.
Face ao meu silêncio, Beatriz introduziu um novo tema de
conversa. Ou de monólogo, já que eu pouco mais fazia do que olhá-la e
perder-me, entre as suas palavras, nos meus muitos pensamentos e divagações. Disse-me
com um ar simpático que não se tinha esquecido da promessa que lhe havia feito.
Escrever-lhe um poema.
Por mais que pense, não sei sobre o que escrever. Juro que
tentei escrever algo sobre os seus olhos complacentes, de um verde que a muitos
decerto despoletaria inúmeras estrofes. Mas não consegui. Talvez noutros
tempos, talvez noutra vida. Naquele outro Francisco que cursou História porque
admirava os grandes feitos dos antepassados e tinha uma sede de conhecimento
desmedida, acerca do passado. Hoje, não consigo lidar com a minha própria
história ou construí-la com exatidão. E o meu próprio passado é algo que temo,
que todos temem ao conhecer, que a todos afasta. Não sou mais esse Francisco e
não sei quem é este novo Francisco, consumido por si mesmo e por tudo o que me
assombra.
A enfermeira parou de falar e isso despertou a minha atenção.
Prometeu que voltaria amanhã, com outra folha e que esperava que nela estivesse
o poema. Não lhe disse nada. Nem sequer sei o que acontecerá entretanto. Nem
sequer sei para onde me levará tudo o que sou amanhã.
Joana Gomes, Porto
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