quinta-feira, novembro 14, 2013

14 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Sentir-se perdido e a raiar a paranóia era uma espécie de memória nublada, do adormecer.  Acordei com o nascer do sol. Curiosa percepção, de uns raios de luz a entrar quarto adentro. Um quarto que não reconheço como meu nem como abrigo.
Generosamente, admito, o Pierre deu-me guarida para a noite, um pouco como se na sua inexpressividade habitual estivesse enraizado o costume de ser hospitaleiro, de acolher um necessitado que é um foragido. Apre! Pensou, ao soerguer-se, é mesmo a mais estranha das ideias. Francisco, admoesto-me a mim mesmo, vê se te atinas e se acordas.

Há menos de uma semana, a Mariana estava morta no meu quarto sem perceber como nem porquê. Ando escondido e sou procurado, como naquelas histórias de policiais, crimes e mistério. Claro que outra (mais uma) morte no quarto do hotel seguinte, adensou a a estranheza e a anomalia.
Ontem, perdido por um, perdido por mil,  fui a um encontro pouco habitual (para não dizer bizarro), que isto de alguém ter poderes de adivinhação é mesmo recurso do desespero. E a mensagem foi ainda mais críptica do que se o André fosse a pitonisa de Delfos - bem vistas as coisas, ele levantou-se e foi-se embora - e eu só tinha chegado à parte de dizer que vira as minhas mãos cheias de sangue....
Ocorreu-me que não tinha prestado a devida atenção à mensagem que estava no cadáver da recepcionista - "a minha vida pela tua, uma vez mais". O singular do discurso, a minha, a tua: qual minha? qual tua? a dela? a minha? Parecia uma enotação de um gospel, "a minha vida pela tua" mas a expressão soava algo familiar. E estava lá o elemento da repetição, no "uma vez mais" - o contar os mortos, mais uma vez?

Ter feito o curso de história tem séria influência no meu modo de pensar pois desenvolvi a tendência de começar sempre as narrativas lá atrás. Onde penso que começaram. E nem sequer sou verdadeiramente historiador, por isso é uma verdadeira ironia maquiavélica, que esteja a narrar-me a história destes dias.
Saindo do quarto, hesito em que devo ocupar o dia, em segurança e, ao mesmo tempo, numa pesquisa que me ajude realmente a encontrar algumas respostas. Um computador, claro! Preciso de aceder a informação sobre esta ideia da troca de vidas, que aparece repetida e me incrimina de tal modo que pareço culpado por fugir e serei preso se me encontrarem.
- Bom dia, Pierre, - saudei-o ao entrar na cozinha. O cheiro a pão torrado foi consolador. Ele acenou-me de volta e perguntou:
- Bom dia, Francisco, pensaste no que vais fazer hoje?

A voz assim, seca e directa, fez-me lembrar os fragmentos da conversa telefónica que tinha ouvido na véspera, às escondidas. Esforço-me por me abstrair dessa rememoração ("o plano está a resultar na perfeição", "ele confia em mim e eu vou mantê-lo por perto", "só irá descobrir quando for tarde demais"....). E por um recentemente descoberto sentido de desconfiança ou de prudência, resolvo manter para mim o que pensara procurar.
- Tenho de aceder a um computador, ver se o caso aparece nas notícias, e como. Por acaso, podes-me emprestar o teu portátil?

Na verdade, poderia ter respondido, "tenho de ver se consigo decifrar a mensagem, o que é que significa "a minha vida pela tua, uma vez mais". Dás-me uma ajuda?". Ainda assim, e tendo tão poucos aliados (ou só este, aparentemente e por agora), não me tenho dado bem estes dias. Nunca pensei poder vir a ser o principal suspeito numa série de mortes.
Ele concordou com a cabeça e disse:
- Vou buscá-lo, deixei-o no quarto.
Mastiguei o pão devagar, com um sentido de urgência contida. Não tinha onde ir e nem me convinha pôr o nariz na rua.

E esquivo-me a olhar o meu colega, ciente de que os olhares transmitem mensagens, apreciam, analisam, dão, tiram. Tenho receio que no meu olhar, Pierre leia a confusão, a desconfiança; ou que perceba o escudo, triste metáfora de quem sabe que tem de se defender, mesmo que possa ser de inimigos imaginários. Ele regressou tranquilamente, de pasta na mão e poisou o portátil na mesa:
- Há comida no frigorífico. Volto à hora de jantar, se precisares de alguma coisa liga. Até logo.
Sózinho, abri o computador, procurei umas folhas de papel e lápis, preparei-me para a pesquisa. E escrevi "a minha vida pela tua".  O tempo escorreu e quase nem dei pela passagem das horas. A cozinha ficava nas traseiras da casa e os murmúrios da rua eram tranquilizadores. Procurei afanosamente indo de jornal em jornal, de ligação em ligação. A minha vida pela tua, my life for your life, once more; e notícias de homicídios, de eventos estranhos na cidade. Refiz os meus passos dos últimos dias, organizei o pensamento e desenhei uma estratégia. Enfim, gastei um dia, para decidir como agir nos dias seguintes.

Lucília Nunes

Almada

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