quinta-feira, novembro 21, 2013

21 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Dormi estranhamente bem esta noite. Talvez fosse do cansaço. Improvisei uma cama de folhas que felizmente abundam nesta época do ano, secas como convinha. Não quis dormir no carro que é demasiado pequeno para se poder esticar as pernas e não estava demasiado frio. Sonhei com a Mariana, crucificada mas ainda viva! Gritava por mim que estava trancado numa cela minúscula, mas despreocupado, quase indiferente. A certa altura a cela convertia-se numa gruta algo acolhedora, iluminada por um candeeiro a óleo e repleta de objectos do quotidiano, livros, roupas e até uma espécie de mesinha feita com madeiras velhas, junto a uma pedra coberta por uns trapos que servia de banco. Em cima da mesa estava o meu diário.



Acordei bem cedo com um pequeno pássaro a esgravatar-me o cabelo. Espantei-o com o susto, mas depois ri-me. Foi bom acordar assim, bem-disposto para variar. O que não me deixou nada bem-disposto foi a fome. Ontem com a pressa nem me lembrei de comer, nem sequer pensei em trazer algo de casa. Queria manter-me ausente da civilização, porque quanto menos contacto com as pessoas menos probabilidade havia de ser descoberto, por isso tinha de me desenrascar com o que encontrasse.



Vasculhei o carro em busca de algum resto de uma refeição antiga, daquelas que compramos já feitas para não perder tempo na cozinha e que são fáceis de comer em viagem. Não é que eu tenha de me preocupar com o tempo, assim desempregado, mas admito que sempre fui preguiçoso. Encontrei uma barra de cereais debaixo do banco do pendura. Ainda bem que sou desleixado. Sentei-me a comer e a pensar que aqueles vinte e quatro gramas não durariam muito tempo no estômago, precisava de ir à caça, nem que fosse de umas raízes. Essas ao menos não fogem como aquele passarito que engraçou com o meu cabelo.



Caminhei então pelo monte, tentando pensar o mínimo possível e focar o que me rodeia. Claro que não foi fácil, de cada vez que fechava os olhos via a Mariana, ora a sorrir para mim, ora estendida no chão. Lá vinha tudo outra vez, as perguntas, as imagens, tudo. Logo que me apercebia de que mergulhara de novo naqueles pensamentos, resmungava comigo próprio e procurava algo que me entretivesse a mente. Trauteei uma música entredentes ao ritmo das passadas. Imaginei-me um ávido caçador de uma tribo indígena, de lança em punho, apanhei um pau para ajudar a fantasia. As passadas foram-se alargando com o rufo dos tambores, corria já por entre a vegetação, saltava com agilidade por cima dos troncos caídos, lancei o pau o mais longe que pude, fechei os olhos e espetou-se na Mariana.



Como pude pensar tal coisa? Misturaram-se os pensamentos, foi isso. Só pode ter sido. Será que quis mesmo matá-la? Por que estaria eu indiferente ao seu grito de socorro durante o sonho? Sentei-me a recuperar o fôlego. O estômago voltava a assinalar a sua presença. Esfreguei a cara com vigor e continuei a caminhada.



Fui comendo uns frutos que encontrei e que ajudaram a acalmar os roncos de fome. Percorri uma grande distância às voltas, tentando não me afastar em demasia do carro, se bem que talvez devesse livrar-me dele antes que o encontrem.



Os dias já são curtos e o Sol baixava velozmente. Talvez devesse voltar e deitar-me um pouco. Subi uma colina que julgava levar-me ao ponto de partida. Foi aí que, por detrás de uns arbustos, encontrei uma gruta.







Filipe Simões
Entroncamento

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