sexta-feira, novembro 08, 2013

8 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Há tanta coisa para dizer sobre o dia de hoje, que honestamente nem sei bem por onde deverei começar.

Ontem não relatei o meu dia na íntegra porque não tive a oportunidade de me apoderar do meu diário durante a noite. Quando estava a caminho do banco para pagar a renda da casa, estanquei instintivamente quando vislumbrei um vulto conhecido a desenhar-se perante os meus olhos. Não quis acreditar quando vi Mariana perto de mim, com um sorriso aberto na minha direcção. Senti-me aglutinado pelos seus profundos olhos castanhos de um modo que palavras dificilmente descrevem.

Assim que Mariana atirou que tinha vindo a Lisboa “tratar de umas coisas” e que quis o acaso que nos encontrássemos, o seu sorriso embraçado denunciou-a. Mas eu também não procurava justificações. Um café levou a um passeio, um passeio a um jantar, um jantar ao meu apartamento e o meu apartamento à minha cama.

No momento em que hoje abri os olhos, senti-me pela primeira vez feliz, desde há muito tempo. Já não sabia o que era fitar o tecto do meu quarto uma vaga de excitação saudável a percorrer as minhas veias.

Mal eu sabia o que estava para vir.

Ao virar o meu rosto de soslaio, para estudar Mariana num sono calmo e angelical, apercebi-me logo de que algo estranho se passava. Ela não se encontrava junto de mim, onde deveria estar. Contudo, o que me fez ficar verdadeiramente sobressaltado não foi a sua ausência, mas antes uns largos rasgões no seu lado dos lençóis. Confuso, estiquei-me na cama e debrucei-me sobre o seu lado do colchão. Senti imediatamente uma batida descompassada a erguer-se no meu peito, ao observar um rasto de um líquido perturbadoramente vermelho que corria desde a cama até à porta do quarto.

Saltei da cama prontamente, mas cada passo ia ficando mais fraco à medida que me aproximava da porta. Quando apertei a maçaneta, suspirei bem fundo e abri a porta de rompante, obrigando-me de seguida a soltar um grito estridente de pânico.
A visão mais aterradora que já vira em toda a minha vida desenhava-se perante os meus olhos, como um quadro do qual era impossível desviar o olhar, de tão pavoroso que era.

Mariana estava morta, apoiada sobre o sofá da sala e esboçando um ângulo estranho com os seus braços, sugerindo que se tinha debatido até ao seu último suspiro. Estava ensopada em sangue, que a envolvia assustadoramente numa das minhas camisas brancas, emprestada na noite anterior. O mais aflitivo desta imagem tétrica seria o modo de como os seus olhos sem vida tentavam ainda fitar um horizonte inexistente.
Demorei algum tempo a aperceber-me que Bruce, o meu gato, estava enforcado, balançando ainda paulatinamente numa corda pendurada na ombreira da porta da cozinha.   

Tive o impulso de levar as mãos à boca para abafar um grito, mas detive-me a tempo ao olhar para as mesmas. Encontravam-se ainda húmidas, tingidas com uma cor encarnada e decoradas com um número razoável de pelos amarelados que se assemelhavam horrivelmente aos pelos de Bruce.

Foi neste momento que me recordo de ter entrado no mais absoluto pânico que tornou as minhas acções puramente mecânicas e carentes de sentido. Sei apenas que corri para a casa de banho lavar as mãos, vesti-me, preparei uma mala com o mínimo indispensável e bati com a porta de casa, incapaz de olhar para a minha sala novamente e com dificuldades em respirar.
Não sei explicar o porquê desta atitude. Tenho receio que tenha sido o meu subconsciente a tentar lembrar-me que fui eu. De qualquer modo não saberia como explicar aquele cenário dantesco à polícia, nem o sangue nas minhas mãos.

Estou agora num quarto de um hotel barato, incapaz de dormir. É sem dúvida irónico não ser capaz de adormecer, mas tudo fazer para acordar. Infelizmente tenho a certeza de que não estou a sonhar, pois já fiz de tudo para despertar deste verdadeiro pesadelo, inclusivamente tentar respirar dentro de um lavatório cheio de água.

Resta-me agarrar a uma esperança: que não tenha sido eu o autor da coisa mais hedionda que já presenciei em toda a minha vida. 


João Azevedo
Lisboa

1 comentário:

  1. Adorei ahahaha isto começa a parecer as Crónicas de Fogo e Gelo do George R.R. Martin ! Muito bom :)

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