sábado, novembro 30, 2013

30 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Não consigo dormir. Felizmente, a claridade do luar lança uma cortina de luz que serpenteia displicentemente por entre uma pequena janela, numa das paredes da minha cela. No estado de nervos em que me encontro, neste momento escrever é como um oásis num deserto, pelo que este foco de luz é tudo o que necessito para não me deixar ir abaixo.

Hoje o dia foi bastante banal. Ou pelo menos, dentro do que eu considero que seja banal num estabelecimento prisional. Acordei, fiquei a olhar pela janela, a cogitar sobre a minha situação, a planear, a desenhar mentalmente um itinerário caso ganhasse a minha liberdade de volta. Almoço. Cela. Matar tempos mortos. Meditar, pensar, ponderar… Pensei ontem que estava a afogar-me, e rio-me agora. Quem me dera ter a sanidade do dia anterior.

Passo agora a explicar o que faz com que a letra desta página esteja nitidamente tremida, tanto por a mão ainda me trair, tanto pela pressa com que neste instante deslizo a ponta do lápis no papel.

Assim que o dia terminou, do qual apenas consigo recordar as frivolidades descritas no segundo parágrafo, as luzes do corredor foram apagadas e chegou o momento dos reclusos repousarem. Foi também o momento que me trouxe até este estado.

Tudo começou com um frio estranho. Digo estranho porque não correspondeu, de todo, ao frio que é expectável de uma noite de Novembro. Este frio penetrava nos ossos de um modo que não era natural. É a melhor explicação que consigo oferecer, embora reconheça que seja incrivelmente débil. Depois de me ter tapado com todos os cobertores a que tinha acesso, senti que os ossos iam estalar. Tinha a sensação de estar a dormir num congelador.

Foi então que ouvi passos no corredor. Não estranhei nada ao ouvir os primeiros sons, pois assumi automaticamente que se tratava de um guarda a fazer a sua ronda. Contudo, houve algo que me despertou a atenção à medida que os passos ecoavam tenuemente no chão. O som sugeria que alguém caminhava descalço. Seria algum recluso que se escapava furtivamente? Mas porquê deixar os sapatos na cela? Estranhando o som, sentei-me na cama.

Palavras não descrevem o que se passou de seguida. As passadas, lentas mas certas, aproximava-se das grades da minha divisão. Quem quer que fosse que atravessava o corredor ficaria dentro do meu campo de visão. Todavia, os passos cessaram, tão abruptamente como começaram. Recordo-me de ter sustido a respiração, pois fiquei com a sensação de que a pessoa parara mesmo antes de passar pelas minhas grades.

Foi então que vi uma cabeça a despontar, lenta e agonizantemente, junto do gradeamento. Primeiro vi uns cabelos desgrenhados. Depois, uns olhos vazios e desprovidos de vida, cujo luar reflectia doentiamente no negro devasso que me encarava. Finalmente, a boca. Os lábios torcidos num meio-sorriso maligno, que representavam algo de muito errado na ordem natural das coisas. Uma mão corroída segurou uma das barras de metal que me protegia e Mariana, ou o que restava dela, lançou o seu corpo contra as grades. Que visão dos infernos. Ela envergava ainda a mesma camisa com que fora morta e penetrava-me com o seu olhar. Quis gritar, mas senti-me a sufocar.

Quando me senti prestes a desmaiar, aquela entidade esticou o braço e apontou para o lado esquerdo da cela. Olhei instintivamente e vi que fios de sangue escorriam pela parede branca. Meu Deus, queria tanto desmaiar, acabar com isto de uma vez. Vi formarem-se palavras. O poema, o maldito poema uma vez mais. O poema que vi na gruta… aquelas palavras que para mim eram já amaldiçoadas:

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!”


Quando me obriguei a olhar para Mariana mais uma vez, ela havia sumido. Notei também que já não tinha frio. Pelo contrário, estou agora cheio de calor e bastante transpirado. Ainda tremo e tenho a respiração demasiado acelerada. O sangue também desapareceu logo da parede, que voltava a repousar imaculada.

Não sei o que vi. Não sei sequer se foi real. Mas desejo que tenha sido uma alucinação. No meu íntimo prefiro estar a enlouquecer, do que a percepcionar manifestações de algo que não deveria ter direito a existir.



Edgar H.P. King

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sexta-feira, novembro 29, 2013

29 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

A intuição às vezes não funciona — passou mais um dia e continuo sem saber quem matou a Mariana. Também continuo preso.

Hoje a minha mãe soube que eu estava preso. Veio cá. Nunca a vi naquele estado. Quase tão desorientada como eu. Custou-me vê-la assim, mas há tanta coisa a passar-se na minha vida que isso agora não é mais que um mero facto, sei lá, banal. Sinto-me repugnante nos intervalos em que afasto o meu pensamento da procura incessante de uma explicação para tudo isto. Fui distante com ela, mesmo sendo que nunca a vi parecer sofrer tanto. Juro, não foi com intenção, mas no estado em que estou não sou nem capaz de me ajudar a mim mesmo, quanto mais outra pessoa. Sou horrível.

Ela não quer acreditar que tenha sido eu o homicida, mas teme-o com todas as suas fibras. Talvez corra lá na aldeia que terei sido eu. O mais natural é que pensem isso. Eu próprio penso. Eu penso tudo, e nada faz sentido. A minha mãe foi embora talvez pior do que veio.

Hoje falei com um advogado que me foi atribuído. Não consegui obviamente contar-lhe o que (eu acho que) se passou. Mas também não lhe soube contar qualquer outra história plausível. Apenas lhe disse que não era culpado. A mãe também disse que ia arranjar outro advogado. Não consigo preocupar-me com isso para já. Ela que trate disso. Eu nem sei, talvez aqui seja mesmo o melhor sítio para eu estar neste momento. Talvez seja o sítio mais seguro. Para mim e para os outros. Estou a tentar usar o tempo que estou detido para primeiro estruturar o meu pensamento, a minha cabeça. Só depois disso pensarei como estruturar a minha vida. Pelo menos é esse o plano. Não que pareça que esteja a resultar por hoje…

O que foi real de tudo isto?

Isto parece um sonho, nada faz sentido. Eu já não sei mesmo se estou num sonho ou não. Mas não se costuma pensar isto nos sonhos. Sinto-me tão perdido. É horrível não poder crer em mim próprio. Quando desconfias de ti, então desconfias de tudo o que vês. Sinto-me enlouquecer.

Mas assumindo que estou no mundo real… De tudo o que me “lembro” muito deve ter realmente acontecido porque me encontro preso. Portanto a Mariana morreu. E também a rapariga do Hotel, porque sou suspeito de dois homicídios —disseram-me quando me prenderam.
Quanto ao Pierre também deve ter sido verdade. Tive de estar em algum lado durante aqueles dias. Ainda assim não é certo. E diga-se, é uma coincidência muito estranha. Se o visse tudo era confirmável. Se ele estiver por cá há-de vir visitar-me. Por esta hora já saberá? Se ele vier saberei se foi verdade. Se não vier estarei na eterna dúvida.

No que toca aos dias no monte não tenho nenhuma certeza. É estranhíssima toda a história da caverna. Uma caverna de tais dimensões… Um alçapão… Nem para mim é credível. Mas o pior, aqueles corpos mutilados que vi (terei visto?) quando lá voltei. O cheiro pútrido. Porquê só mulheres? E aquela parede escrita em sangue… E logo com um poema que eu conheço? Maldito alçapão. Já creio mais que seja um alçapão para o meu subconsciente tétrico. Estarei maluco? Dentro de mim pode haver algo tão negro, capaz de gerar, ainda que imaginado, tamanho horror? Bem, das duas uma: ou a resposta é sim, ou então dentro de outra(s) pessoa existirá algo ainda pior — capaz de o gerar na realidade. E ainda não está excluído que essa pessoa seja eu mesmo… Se pudesse sair de cá poderia negar ou confirmar, sabe Deus, a existência de tudo aquilo. Ainda tenho algumas dores no tornozelo, mas isso pode ter sido feito em qualquer lado…

Ainda perguntei ao advogado se com o interrogatório a polícia ficou mais ou menos convencida que eu sou culpado. Ele disse que não tem acesso a essa informação. Mas eu preciso ter. Acho que confio mais no juízo da polícia do que no meu.

Hoje ao fim da tarde fui transferido da cela da esquadra para a prisão onde vou ficar, “até ordem em contrário”. Noutras circunstâncias seria interessante descrever a prisão, as rotinas, os outros reclusos… Mas isso agora é somente irrelevante.
Só quero uma luz, um fio guia, algo para me agarrar, uma tábua de salvação de lógica neste mar de absurdos…

Estou a afogar-me.


José Costa

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quinta-feira, novembro 28, 2013

28 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Às vezes pergunto-me se os últimos dias não vieram de algum a limitar a minha capacidade intelectual. Como é que é possível ter vindo a cometer um erro tão infantil?

Decidi ontem voltar a casa e delinear um cuidadoso plano que trouxesse alguma justiça a Mariana. Decidi afastar-me da gruta que tanto persuadia o meu espírito a penetrar nos seus sombrios mistérios. Decidi ignorar esse chamamento para enfrentar uma realidade muito mais dura e, possivelmente, perigosa.

Bastou portanto um dia para que a justiça me batesse à porta de casa e me levasse para a esquadra para um interrogatório. Até eles devem ter ficado confusos, quando me viram enrolado no cobertor e com uma chávena de café na mão ao abrir a porta.

Deram-me tempo para me vestir, e seguimos no carro deles para uma divisão algures em Lisboa.

O interrogatório em sim correu mais ou menos como aqueles que vemos nos filmes americanos. Repetiram imensas perguntas para se certificarem de que não existiam contradições nas minhas narrativas, do mesmo modo que lançaram várias questões que do meu ponto de vista não tinham qualquer tipo de relevância.

Contudo, o que mais me surpreendeu foi o facto de não me tentar esquivar a uma possível autoincriminação. Na verdade, o que a minha mente mais queria neste momento era saber se teria sido mesmo eu a matar Mariana. E nada como provas forenses para me responder a essa questão.

Assim sendo, ara além de responder com a mais absoluta verdade ao que me era perguntado, prestei-me a realizar todos os testes que me foram pedidos. Como é mais que certo, estou também preso preventivamente. Um guarda simpático deu-me uma folha e um lápis, pelo que me é possível escrever estas linhas enquanto espero que desliguem as luzes.

Algo me diz que amanhã saberei quem matou Mariana. Ou, desejo eu, quem não matou.



Bruno Dias
Lisboa

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quarta-feira, novembro 27, 2013

27 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

O Inverno chega. Sinto-o na minha janela. Nestes dias cinzentos, aproveito quase sempre para me prender à nostalgia e à tristeza. Acho que combina. Neste momento da minha vida, a nostalgia é o único suporte que me mantém em pé.  Cheguei a Lisboa no meu carro. Ainda Lisboa bocejava entorpecida. A ânsia era grande.
“A promessa foi feita Mariana! E eu sou um Homem de palavra”.

Percorri a cidade, envergonhado. Sorrateiramente, aproveitava as suas sombras e becos para passar despercebido. Não pertenço aqui! E esta maldita cidade, grita-me isso mesmo aos ouvidos em cada avenida que cruzo.

Finalmente encontrei um sitio para ficar. Resolvi esquivar-me dos locais onde existia a hipótese de ser reconhecido, mesmo que remota. Quero ter tempo e espaço para analisar toda esta situação sem ser interrompido por algum curioso.

“Olha para ti, Francisco!”- estas palavras absorvem o meu ser. Como posso eu olhar para mim? Como posso eu ter essa coragem? Sei que é isso que exigem de mim. Mas serei eu forte o suficiente? Vou tentar!

Deixei de parte as questões filosóficas que me debrucei no dia anterior. Hoje é dia de agir! Quero encerrar em mim a parte que me faz meditar, substituindo-a por um empirismo que não se baseia em metafísicas, mas sim na acção! Tenho uma missão. E toda a minha vida, de agora em diante, será a pensar nela. É a minha obrigação. Basta de fugir.

Recomposto, sentindo-me decidido, pego numa caneta. Vou traçar um plano. Vou fazer de tudo para me impor, inteligentemente. Quero descobrir a verdade, por mas sombria que ela se possa vir a mostrar.

Olhando pela janela, medito. Aprecio uma chávena de café. Na minha cabeça, vêm-me à memória o mendigo que vislumbrei hoje na estação. Roto, sujo, emaranhado. Aquele rosto entristecido pela vida, envergonhado enquanto estendia o seu copo na esperança que algum troco lá caísse. Senti vergonha na Humanidade. Os olhares de desprezo e repugnância que aquele desgraçado enfrenta todo o dia, foram como farpas na minha alma. Sinto-me um pouco como aquele senhor. Como se estendesse o meu copo à vida e ela só me atribuísse olhares reprovadores. Estou tão perdido quanto ele.

E a chuva cai.
Miguel Raposo, 
Odivelas.

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terça-feira, novembro 26, 2013

26 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Raramente a vida acontece como a pensámos.
Quando miúdo, a aldeia era o meu paraíso e refúgio. Era aí que eu vivia com intensidade os afectos que iam construindo a minha vida. Era aí que eu queria permanecer para sempre, para eternizar os dias felizes, infinitos no olhar da criança extasiada perante esse mundo primordial.

Do alto do outeiro, que me evoca a aldeia longínqua, pressentindo-a magoadamente do outro lado do mundo, esmagada pela paisagem melancólica do Outono, que paira tranquila sobre as suas casas e gentes, caio em mim e pergunto-me por que razão nada do que imaginei aconteceu, o que me levou a fazer um percurso inverso a esse sonhado. Depois, revejo em segundos os acontecimentos dos últimos dias da minha vida num caleidoscópio descontrolado, veloz, e a estupefacção sobe de tom.

Neste desejo de evasão, ligo-me com afinco a um espaço mais onírico do que real. Quando aí estive da última vez, com a minha mãe na homenagem cumpridora do ritual de cada ano a meu pai, fantasma já longínquo, mas contudo ainda figura tutelar e aglutinadora da família,
(filho, é mesmo História que queres tirar?, Joaquim, deixa o Francisco seguir o que gosta, Sim, mas é para bem dele que chamo a atenção, pai, eu sei, agradeço a sua preocupação, mas já decidi)
estava longe de imaginar a alteração rocambolesca que a minha vida sofreria nos dias que se seguiram até hoje e que me trouxeram aqui a este nenhures .

Nos últimos anos, perante a situação de desemprego, desprezei a pacatez que me dominava, queixei-me da rotina exasperante, lamentei a inércia atrofiadora, sofri com a pequenez dos meus dias. Aquela deslocação à aldeia, imposta pela minha mãe, sem margem a qualquer escusa da minha parte, parece ter sido o ponto de partida desta tenebrosa agitação que agora vivo. Como se as forças telúricas se conjurassem contra mim e me quisessem castigar da falta de convicção em relação às minhas origens e identidade. De facto, foram muitos os anos que passei fora daquele universo sereno e acolhedor, berço de família, de amigos e de primeiros amores,  
        (Mariana, por que me procuraste naquele dia? Que segredo encerra a tua morte?)
seduzido pelo apelo da cidade e da sua vida enganadoramente atractiva e tão … cansativa. Esse “supremíssimo cansaço/ íssimo, íssimo , íssimo/ cansaço…” de que falava Álvaro de Campos e que rapidamente tomou conta de mim, minando-me a vontade e a alma.
Mesmo assim, apenas pontualmente e sempre de fugida voltei à aldeia. Também ela parecia não valer o esforço de uma tentativa de reconciliação com o espaço.

Por isso, reinventando-a agora, pergunto-me quem seria eu se ali tivesse vivido. Teria respondido ao sonho? ou a vida é toda um equívoco, independente do espaço onde é vivida? andamos tão distraídos de nós próprios que não nos desencaminhamos do rumo certo? passamos ao lado das nossas vidas sem nos apercebermos do tempo e do espaço que definham à nossa passagem? tudo morre antes que possamos fazer alguma coisa? não acreditamos nos encontros determinantes do nosso percurso? exterminamos tudo à volta?  o tédio é o grande massacre, presença pesada e severa, tentacular , “esse supremíssimo cansaço”…

A força desta terra desconhecida, onde por ora me refugio, começa a fazer-se sentir, talvez por me trazer a outra de volta, que me redime generosamente de um percurso feito de costas voltadas para ela. Sinto que tenho de encetar a demanda de mim próprio, para restabelecer a ordem no caos. As respostas não podem ficar por dar. Cabe-me partir à procura delas.
O magnífico Torga ostenta o impacto do mito de Anteu na sua poesia, sentindo-se revigorado sempre que toca na terra, adquirindo novas energias e força construtiva. Nada mais verdadeiro. Toda a minha vontade se recompôs numa firme decisão: não vou entrar na gruta. Esta é para mim a metáfora do labirinto e da escuridão profunda da minha vida. Está na hora da rejeição.
Não vou continuar a fugir,
(Mariana, não duvides, prometo que te vou dar a resposta, tu mereces isso, foste o meu único amor, ingénuo e verdadeiro, durante muito tempo sem o saber…)
esta terra, transportando-me oniricamente para a terra-berço, dá-me o ânimo essencial para voltar a Lisboa e enfrentar a verdade.

Maria Eugénia Alves
Loures

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segunda-feira, novembro 25, 2013

25 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Hoje voltei à gruta e não tenho palavras, para descrever o que vi! Não tenho, não por me faltarem, mas porque não existem. Nem existirão… Não consigo falar, não consigo escrever, nem sequer consigo pensar…


Miguel Alves
Seixal

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domingo, novembro 24, 2013

24 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Não consigo explicar o que se passa na minha vida. Não consigo explicar absolutamente nada. Será que a gruta foi um sonho? Será que a minha própria mente decidiu pregar-me a partida de me fazer descer uma escadaria fictícia, fazendo com que um poema ecoasse nos recantos da minha imaginação? 

Gostaria que assim fosse. Isso significaria que existia uma explicação racional a que podia agarrar-me, relativamente aos eventos do dia anterior. 

Tudo o que sei, neste momento, é que esta manhã despertei no interior do meu carro. Soltei uma gargalhada estridente, pois a última coisa de que tinha memória foi um som obscuro e furtivo junto de mim, no interior de uma sala lúgubre cujo acesso era feito através de um alçapão secreto de uma gruta. Recordo-me de ter entrado momentaneamente em pânico. Tratou-se de uma sensação fugaz, pois a partir desse momento perdi a minha consciência. 

“Foi um sonho”, pensei automaticamente ao fitar a folhagem das árvores recortada no cinzento das nuvens, que se desenhava perante mim do interior do meu automóvel. Sem saber como, aparentemente perdi os sentidos e vim para aqui mecanicamente. Ou pior, alguém me trouxe até aqui. 

Contudo, mal tentei mexer-me, verifiquei que não se tratou de sonho nenhum. Abri a porta do carro e assim que pus o pé no chão senti-me a abater com as dores e com o peso do meu próprio corpo. Puxei a perna das calças para cima e conferi os meus receios: tinha o tornozelo bastante inchado. Senti um baque no estômago ao pensar que isso só podia dever-se à queda que dei ontem. 

Não sei o que se passa, mas todas as fibras do meu ser me dizem que é agora imperativo voltar àquela gruta. Não consigo explicar, mas sei que há respostas por descobrir lá dentro. Nem que para isso tenha de enfrentar o que quer que lá habite mais uma vez. 

Todavia, durante o resto do dia de hoje vou apenas dedicar-me a procurar mais alguns alimentos para a minha subsistência, assim como a estudar o poema que li naquela parede. Seria impensável retornar à gruta já hoje. Não com o tornozelo neste estado. 



Luís Mendes 
Alenquer

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sábado, novembro 23, 2013

23 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Acordei, e não consegui pensar noutra coisa que não fosse voltar à gruta. Vasculhei pelo carro e encontrei um isqueiro com uma pequeníssima lanterna incorporada. Enquanto me dirigia para a gruta, não pode evitar um sorriso irónico perante a minha própria figura. É como se a minha vida gozasse comigo, aqui estou eu, escondido no meio do mato, suspeito de 2 homicídios, com uma lanterna do tamanho de um pirilampo para entrar numa gruta.

A forte luminosidade da aurora contrastava em absoluto com o breu que imperava na gruta, bastaram-me 7 ou 8 passos no seu interior para que já não conseguisse ver nada. A luz trémula e ridícula da minha lanterna, pouco mais fazia do que mostrar-me se ainda tinha espaço em frente para prosseguir, ou se estava prestes a bater em pedra.

Após cerca de 20 minutos a andar, às voltas num espaço confinado que ainda assim me pareceu bastante maior do que aparentava a uma mirada mais desatenta, houve algo que me deteve. No chão da gruta, havia uma parte oca. Por entra a areia e algumas pedras, havia algo que só podia ser um buraco. Apressei-me a tentar desenterrar o que quer que fosse que estivesse por baixo daquela areia, mas a luz mísera do meu isqueiro-lanterna, não me ajudou. Depois de alguns minutos e de muitas feridas nas mãos, vi madeira, e foi fácil perceber que se tratava de um alçapão. Assim que o vi, fui invadido por uma gargalhada doentia…

Levantei-me, ri, gritei, ri mais, gritei mais.

-Um alçapão numa gruta? Só falta encontrar um tesouro! Quando é que aparece o Nicholas Cage, e se prova de vez que estou numa porcaria de um filme americano?

Não tenho a certeza se foram estas as minhas palavras exactas, mas foi algo de semelhante. Depois de me acalmar, abri cuidadosamente o alçapão e com a ajuda da luz mínima da minha lanterna consegui discernir por entre a escuridão e as teias de aranha, uma escadaria. A hesitação e o temor são dois luxos dos quais já me vi forçado a abdicar, como tal, sem pensar comecei a descer a escadaria.

Tinha dado e passos, quando (previsivelmente) tropecei e acabei a rebolar pelos degraus. A minha aterragem foi menos dura do que imaginei, mas ainda assim foi o suficiente para magoar bastante. A custo levantei-me, tentando ignorar as dores que atacavam o meu tornozelo. O isqueiro que, muito habilmente, consegui conservar comigo durante a queda, foi de novo acendido, para mais uma vez me dar uma visão parca do local. Detive-me numa parede, onde me pareceu encontrar um texto, aproximei-me e finalmente a luz da minha lanterna iluminou-a, era um excerto de um poema, e eu reconheci-o:

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!”

Reconheci, automaticamente, este poema de Baudelaire. Eu já o tinha lido, eu já o tinha ouvido, eu já o tinha visto, mas onde? Não me sobrou tempo para meditar sobre isto, porque fui interrompido por um restolhar, do outro lado da sala!


Dom Sou Quem Não Sei Ser, Porto
(pseudónimo)

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sexta-feira, novembro 22, 2013

22 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Durante o dia de hoje passei a maior parte da manhã a tentar decidir se devia entrar ou não na gruta que havia descoberto. Por um lado, a expectativa de me aventurar a penetrar no interior do desconhecido era aliciante. Desde criança que a descoberta do desconhecido me fascinara. Por outro lado, seria indubitavelmente um risco. E havia um outro pormenor. Admito que pudesse ser apenas a minha imaginação, mas o modo de como a folhagem escondia a entrada da gruta sugeria que esta tinha sido camuflada por mãos humanas.

Depois de mais algumas voltas em redor do espaço, decidi-me a afastar os ramos mais uma vez. Depois enfiei a cabeça dentro da gruta e gritei para verificar a intensidade com que o meu eco me respondia. A sua resposta indicou-me que embora a sua entrada fosse relativamente estreita, o seu interior parecia ser bastante largo e espaçoso.

Finalmente resolvi arriscar. Provavelmente o últimos dias tornaram-me mais impetuoso, pois se a minha vida não estivesse virada do avesso duvido que tentasse esta proeza. Retirei o meu telemóvel do bolso e liguei o “modo lanterna”, não antes de verificar que a bateria do mesmo se encontrava já tristemente gasta. Provavelmente não aguentaria atá ao final do dia.

O meu principal receio residia na possibilidade de existir alguma forma de vida no interior da gruta, fosse ela humana ou não. Não seria de todo agradável ver algo a atacar-me repentinamente. Por essa razão avancei aos poucos com a pedra mais pontiaguda que encontrei numa mão e com o telemóvel na outra, a servir-me de fonte de iluminação.

A gruta desenhava um corredor estrangulado e labiríntico. No entanto, notava que o espaço parecia alargar-se progressivamente à medida que ia dando os meus passos. E não me enganei, pois fui obrigado a estancar os movimentos abruptamente. A luz do meu telemóvel deixar de ser suficiente para eu conseguir vislumbrar as paredes do corredor.

Sem coragem para avançar às cegas mas fortemente atraído por esta estranha gruta, admiti a minha derrota temporária e voltei para trás. Iria procurar mais alguns frutos para matar a fome e manter-me-ia escondido nesta zona. Voltei para o carro, onde irei pernoitar, mas com uma certeza. Voltarei amanhã à gruta com algo que me alumie o caminho com clareza. Quero desvendar o que a estranha gruta me esconde.



Luís Alves

Guarda

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quinta-feira, novembro 21, 2013

21 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Dormi estranhamente bem esta noite. Talvez fosse do cansaço. Improvisei uma cama de folhas que felizmente abundam nesta época do ano, secas como convinha. Não quis dormir no carro que é demasiado pequeno para se poder esticar as pernas e não estava demasiado frio. Sonhei com a Mariana, crucificada mas ainda viva! Gritava por mim que estava trancado numa cela minúscula, mas despreocupado, quase indiferente. A certa altura a cela convertia-se numa gruta algo acolhedora, iluminada por um candeeiro a óleo e repleta de objectos do quotidiano, livros, roupas e até uma espécie de mesinha feita com madeiras velhas, junto a uma pedra coberta por uns trapos que servia de banco. Em cima da mesa estava o meu diário.



Acordei bem cedo com um pequeno pássaro a esgravatar-me o cabelo. Espantei-o com o susto, mas depois ri-me. Foi bom acordar assim, bem-disposto para variar. O que não me deixou nada bem-disposto foi a fome. Ontem com a pressa nem me lembrei de comer, nem sequer pensei em trazer algo de casa. Queria manter-me ausente da civilização, porque quanto menos contacto com as pessoas menos probabilidade havia de ser descoberto, por isso tinha de me desenrascar com o que encontrasse.



Vasculhei o carro em busca de algum resto de uma refeição antiga, daquelas que compramos já feitas para não perder tempo na cozinha e que são fáceis de comer em viagem. Não é que eu tenha de me preocupar com o tempo, assim desempregado, mas admito que sempre fui preguiçoso. Encontrei uma barra de cereais debaixo do banco do pendura. Ainda bem que sou desleixado. Sentei-me a comer e a pensar que aqueles vinte e quatro gramas não durariam muito tempo no estômago, precisava de ir à caça, nem que fosse de umas raízes. Essas ao menos não fogem como aquele passarito que engraçou com o meu cabelo.



Caminhei então pelo monte, tentando pensar o mínimo possível e focar o que me rodeia. Claro que não foi fácil, de cada vez que fechava os olhos via a Mariana, ora a sorrir para mim, ora estendida no chão. Lá vinha tudo outra vez, as perguntas, as imagens, tudo. Logo que me apercebia de que mergulhara de novo naqueles pensamentos, resmungava comigo próprio e procurava algo que me entretivesse a mente. Trauteei uma música entredentes ao ritmo das passadas. Imaginei-me um ávido caçador de uma tribo indígena, de lança em punho, apanhei um pau para ajudar a fantasia. As passadas foram-se alargando com o rufo dos tambores, corria já por entre a vegetação, saltava com agilidade por cima dos troncos caídos, lancei o pau o mais longe que pude, fechei os olhos e espetou-se na Mariana.



Como pude pensar tal coisa? Misturaram-se os pensamentos, foi isso. Só pode ter sido. Será que quis mesmo matá-la? Por que estaria eu indiferente ao seu grito de socorro durante o sonho? Sentei-me a recuperar o fôlego. O estômago voltava a assinalar a sua presença. Esfreguei a cara com vigor e continuei a caminhada.



Fui comendo uns frutos que encontrei e que ajudaram a acalmar os roncos de fome. Percorri uma grande distância às voltas, tentando não me afastar em demasia do carro, se bem que talvez devesse livrar-me dele antes que o encontrem.



Os dias já são curtos e o Sol baixava velozmente. Talvez devesse voltar e deitar-me um pouco. Subi uma colina que julgava levar-me ao ponto de partida. Foi aí que, por detrás de uns arbustos, encontrei uma gruta.







Filipe Simões
Entroncamento

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quarta-feira, novembro 20, 2013

20 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

                                                                 Algures no Meio da Serra



Hoje foi um dia negro e atribulado.


Ontem depois de muito reflectir, decidi ir ao apartamento. Sai, aproveitando a visita diária de Pierre aos sem-abrigo. Deixei uma nota de agradecimento, pois mesmo desconfiando dele, deu-me abrigo durante uns dias e senti que devia agradecer-lhe.


Pus o chapéu, e dirigi-me até ao meu apartamento. Depois de 20 minutos a pé, nos quais eu tremia de ansiedade, sem saber se me procuravam, cheguei à entrada. Parei do outro lado da rua, esperando um pouco enquanto respirava fundo, tentando controlar o nervosismo que me assaltou. Não se via ninguém na rua, e isso encorajou-me a continuar. Atravessei a rua e inspeccionei o meu carro, que se encontrava tal e qual como o tinha deixado, na frente do apartamento. Pelo pó no capô, diria que ninguém lhe mexeu e isso aliviou-me e deu-me alguma esperança.


Tirei então a chave do bolso e abri a porta devagarinho, quase sem ruído, e subi as escadas sempre com cuidado, não fosse o diabo tecê-las e ter alguém à minha espera. Entrei e fechei a porta com o mesmo cuidado, acendendo a luz.


Estava tudo tal e qual como tinha deixado naquele fatídico dia. Excepto uma coisa: os corpos tanto do Bruce como da Mariana já lá não estavam! Senti um arrepio na espinha, sem os corpos as provas que pretendia encontrar para provar a minha inocência tornavam-se mínimas. A confusão assaltou-me de novo e no silêncio procurei reviver aqueles últimos momentos em que vi ambos com vida.


Como é que um assassino conseguiria entrar na minha casa, arrastar a Mariana da cama e matá-la sem eu dar por isso? Eu devia ter ouvido gritos. Mesmo quando estrangulavam o Bruce deveria ter acordado com ele a miar e não acordei porquê? Não me encontrava tão cansado quanto isso, será que tinham colocado algo na comida ou na bebida do restaurante? E se o fizeram, porquê a mim? Porquê a ela?

Ao pensar nisso e ao tentar relembrar-me, deu me uma enorme dor de cabeça. Será que eu tinha dupla personalidade e por isso cometi os crimes e não me lembrava?


Liguei a televisão, para ver as notícias. Estavam a falar do incêndio no hotel em que tinha estado, quando a jornalista interrompe a notícia com um comunicado de última hora. O corpo de Mariana tinha sido encontrado, crucificado numa velha ponte de madeira, não muito longe dali. Escrito na madeira estava a tal mensagem enigmática “A minha vida pela tua, uma vez mais” e Bruce encontrava se deitado aos seus pés.


Algumas testemunhas descreviam um homem na casa dos 30, de chapéu preto. Quando mostraram o desenho da pessoa senti-me horripilado. Era um desenho meu! Descreviam-me a mim! Mas como?

A minha mente acelerou, a polícia rapidamente estaria ali por isso agarrei no casaco e nas chaves do carro e sai à pressa daquele sítio, antes que me apanhassem.


Entrei no carro, e guiei sem destino, pelo meio dos montes. Prefiro não revelar a minha localização para o caso de encontrarem este diário. A única coisa que posso revelar, é que vejo a aldeia daqui e o céu encontra-se limpo e estrelado. Continuo a reflectir.

Desde que comecei este maldito diário que nada corre bem! Parece que uma maldição me atingiu mal comecei a escrevê-lo. Aquela mensagem não me sai da cabeça, tem de ter algum significado! Terei lido a mesma em algum lado? Alguém me terá dito? Quem poderia ser assim tão cruel e por que me culpava a mim?


Não sei o que fazer e a loucura é que só posso confiar neste maldito diário, pois se não desabafar dou em louco! Talvez, enquanto escrevo surja a solução para esta trama horrível para a qual fui atirado. Um sentimento de justiça surge dentro de mim, tenho de encontrar o culpado custe o que custar. Tenho de saber quem fez isto à minha querida Mariana, nem que me custe a minha vida!



M. Silva

Vila do Conde

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terça-feira, novembro 19, 2013

19 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Hoje apercebi-me que quando comecei o meu diário referi a banalidade dos meus dias. Desde aí, reencontrei uma ex-namorada, ela foi assassinada, eu não sei o que se passou, tive de fugir, no hotel onde fiquei outra pessoa foi assassinada, fugi, escondi-me entre os sem-abrigo onde encontrei um colega da faculdade, ele deu-me abrigo e nem sequer sei se ele está a ajudar-me ou a usar-me. Desde que comecei este maldito diário, há 19 dias, a minha vida tornou-se tudo menos banal… E agora já sinto a falta dessa banalidade, começo a achar que a culpa é deste diário, começo a temer escrever neste diário, e por isso hoje prefiro não escrever nem mais uma letra…



                                                                                                                                               



 Sofia Sousa 
Óbidos

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segunda-feira, novembro 18, 2013

18 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

O tempo vai passando e sinto que esta casa me sufoca cada vez mais. Aquilo que no início era um oásis, um porto de abrigo para a minha pessoa, está progressivamente a tornar-se num local claustrofóbico para o meu estado de espírito.

Cada vez olho para Pierre com olhos mais desconfiados. E provavelmente sem razão. Contudo, o facto de ele ser a única pessoa com quem tenho mantido contacto faz com que estude tudo com o dobro da atenção. Coisas que outrora seriam perfeitamente banais são agora motivo de análise. O modo de como diz “bom dia”, os olhares com que me olha às refeições, os maneirismos que adquire quando se disfarça de sem-abrigo. Tudo em Pierre é neste momento suspeito.

É por essa razão que tenho de sair daqui. Não será assim tão fácil descobrir se posso ou não fiar-me nele. E creio que o melhor é não ficar à espera que surja uma prova dos nove.

Cabe agora definir o que fazer. Conto com que amanhã já não esteja a escrever nesta cama, por isso tenho de decidir para onde é que vou. Parece-me lógico que não possa ir até ao meu apartamento. O meu apartamento… Acabou de me ocorrer que se ainda não apareci nas notícias, é porque presumivelmente Mariana ainda não foi achada. Será possível? Será que no meio do meu pânico me acobardei de tal modo que deixei ao acaso o corpo morto de uma rapariga por quem me tinha apaixonado novamente? Confesso que sinto repulsa de mim mesmo ao escrever estas linhas.

É porém necessário manter-me objectivo, pelo menos por enquanto. O meu apartamento está riscado do mapa. Não deverei arriscar-me assim tanto. Ou deverei? Bem vistas as coisas tudo tem estado calmo. Será que sou procurado pelas autoridades? Talvez um novo hotel não seja mal pensado.

Há todavia algo que faz focar as minhas forças no meu apartamento. Sinto que com a pressa em ter fugido, existem muitas coisas que poderão ter escapado à minha atenção.

Tenho de decidir como vou agir amanhã. Tenho muito receio, mas se não o quero fazer por mim, ao menos que o faça por Mariana…


Carlos Neves
Bragança

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domingo, novembro 17, 2013

17 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Passei a maior parte da manhã na cama do meu quarto, pensativo e distante do presente. Como se ver crimes horríveis que brotavam à minha volta não fosse já mau o suficiente, agora foi como se toda a situação subisse um novo degrau na sua gravidade. Ontem tentaram matar-me.

Mas será que tentaram mesmo? Passei horas simplesmente sentado na cama, a abrir e a fechar a curiosa caixinha que continha terra e algumas pedras escuras. Não sei como, não sei não porquê, mas posso jurar que a caixa está de algum modo relacionada com toda esta história.

Esforçando-me por voltar à minha linha de raciocínio, fechei a caixa e fitei o tecto, procurando concentrar-me. Se me quisessem morto tinham trancado tanto a porta como a janela. O que se passou foi uma mensagem dirigida à minha pessoa, é a única hipótese… ou pelo menos a que faz mais sentido. De todas as portas que podiam estar abertas naquele corredor infernal e tomado pelas chamas, foi a minha. A porta do quarto onde eu estivera, e onde apareceu também o corpo da rapariga da recepção. Assim como a janela.

No momento em que sai da cama, tinha já decidido que se tratou de uma maquinação para me dar um aviso. Provavelmente algo como “não procures demasiado, senão…”

Foi a voz de Pierre que voltou a trazer-me à realidade, quando eu já a tinha perdido uma vez mais durante o almoço.

- Francisco…?

- Hum, sim? – retorqui, sobressaltado.

- Estava a dizer-te que o hotel foi incendiado.

O momento de fazer poker face, não deixar que as minhas feições me traíssem.

- Oh! A sério?

Não sei se o meu tom foi exagerado ou demasiado falso, mas não gostei do modo de como Pierre me estudou durante alguns segundos. Será que ele sabia de alguma coisa?

Ou pior, pensei bastantes horas depois quando o dia já findava: será que ele estava no hotel quando o incêndio deflagrou?



Pedro Freitas
Leiria 

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sábado, novembro 16, 2013

16 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Assim que acordei, despachei-me em seguir para o hotel. Não sei o que me motivou para isto, mas foi como se um impulso maior que eu próprio me quisesse conduzir até lá. Eu sentia que tinha de encontrar algo para provar a minha inocência, sabia também que me colocava em risco absoluto, mas isso agora já parecia insignificante. Em risco estou eu há já vários dias, desde aquela fatídica noite.

O hotel estava fechado e vazio, fitas da polícia impediam o acesso. Contornei o edifício e encontrei uma porta traseira, velha e gasta o suficiente para eu a conseguir abrir ao pontapé. Assim que dei a primeira pancada ela chiou nos gonzos e abriu-se.
Ao entrar, todo aquele espaço pareceu absorver-me e devolver-me às garras do crime que ali aconteceu, o meu crime… Aquele que eu não cometi, mas cujo possessivo se mantém.

Subi as escadas, e a cada passo procurava um sinal. Uma pequena evidencia, qualquer coisa que me provasse que não posso ter sido eu. Que eu não sou o criminoso.
Ao atravessar o corredor, um pequeno objecto prendeu-me a atenção, era uma pequena caixa, do tamanho de uma caixa de fósforos comum. Ao apanhá-la verifiquei que estava cheia, de uma terra negra, e algumas pedras também escuras. Guardei a caixa, e continuei a minha vistoria.
Estava quase a chegar ao quarto, ao tal quarto, aquele onde eu estava, quando fui assaltado por uma dor de cabeça súbita. Um cheiro inarrável invadiu-me as narinas e uma dor que percorria todo o crânio e me convencia que os meus olhos já tinham abandonado a sua posição devida na cara. Foi como se o meu cérebro estivesse a ser directamente queimado com ácido. Caí de joelhos e não me lembro de mais nada.

Acordei, com um cheiro a fumo fortíssimo que invadia já todo o edifício, os meus olhos ardiam dolorosamente. Mesmo sem conseguir ver nada, e extremamente atordoado, não tive dificuldade em perceber que o hotel estava a arder. Percorri a escadaria mas a saída foi-me vedada por labaredas enormes. Corri de novo para o corredor, e só então me apercebi, que uma das portas estava aberta, apenas uma…a porta do quarto onde eu estava quando tudo aconteceu. Corri para lá, e vi que a janela estava também aberta. Arranjei coragem e corri para ela, evitei olhar quando saltei, mas a viagem até ao chão foi bastante curta. Senti um músculo da perna a rasgar, mas sem pensar nisso corri até a um táxi que me levou de volta para a casa de Pierre. Só agora consigo pensar, com discernimento, sobre o que se passou. O meu desmaio… O incêndio… Uma única porta aberta…e o facto de ser aquela…

Quando Pierre chegou, pensei em contar-lhe tudo o que se tinha passado, mas algo em mim, impeliu-me a não o fazer.

                                                    João Ferreira
                                                      Amarante

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sexta-feira, novembro 15, 2013

15 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Hoje ao acordar reuni mentalmente os dados dos últimos dias. Decidi que seria contraproducente permanecer mais um dia inteiro em casa de Pierre. A questão da segurança era sem dúvida alguma bastante relevante, mas por outro lado eu tinha a noção de que não poderia continuar nesta toada durante tempo indeterminado. Não fazia sentido ocupar a casa de Pierre indefinidamente.

Contudo, havia ainda outro factor com que jogar. Não sabia se podia confiar ou não em Pierre, depois da conversa solta que captei com quem penso ser André. Por uma questão de lógica e coerência decidi tratar primeiro deste assunto. Embora os dois crimes que me envolviam fossem obviamente muito mais importantes, eu não conseguiria nunca dedicar-me convenientemente aos mesmos sabendo que Pierre poderia estar de algum modo interligado a este enredo.

Numa primeira tentativa de juntar algumas peças do puzzle, cheguei à conclusão de que ter encontrado Pierre naquele beco dominado por sem-abrigos foi um puro acaso. Mesmo partindo do pressuposto válido de que Pierre estaria envolvido em algo contra mim, eu lembro-me nitidamente de ter corrido para um beco aleatório quando fugi do hotel. Conseguiria Pierre de algum modo deduzir que eu fugiria para aquele beco específico? Tenho as minhas sérias dúvidas.

Resta a hipótese de Pierre ter pensado em alguma trama após o nosso encontro fortuito. Mas tal pressuposto levantaria igualmente algumas dificuldades num plano lógico. Em especial o motivo. Não encontro qualquer fundamento racional para sustentar a hipótese de ver Pierre voltar-se contra mim. Não ao fim de tantos anos de amizade. E muito menos algo que envolvesse o assassinato de duas mulheres.

E foi assim, até à hora do almoço, que a minha mente decidiu que a conversa que ouvi estava muito provavelmente relacionada com o seu trabalho de pesquisa.  Algumas frases poderiam caber somente num contexto algo forçado, mas a verdade é que esta hipótese me parece mais viável do que qualquer uma das outras. E se Pierre ganhou a confiança de um sem-abrigo qualquer que é suspeito de um crime? A probabilidade poderá ser escassa, mas é um dado a ter em conta. Se há uma coisa que os últimos dias me ensinaram é que as coisas improváveis podem acontecer.

Contudo, a minhas incertezas relativamente às intenções de Pierre tornaram a emergir já ao jantar, quando eu afirmei que amanhã iria tentar novamente visitar o hotel. Não tanto pelo que saiu da boca de Pierre, mas mais pelos olhares que percepcionei no seu rosto. Uma mescla de hesitação com desagrado.

- Claro, fazes bem – afirmou cuidadosamente após alguns segundos. – Eu vou contigo.

Será que ele quer realmente ajudar-me? Possivelmente. Mas com tudo o que já se passou é inevitável pensar noutra palavra. Controlar-me parece o vocábulo tenebrosamente correcto. Ou então são coisas da minha cabeça, que ultimamente tem andado perigosamente paranóica. Não quero cometer nenhuma injustiça. Amanhã terei de ser cauteloso a dobrar nos meus passos.

Ana Cristina
Évora


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quinta-feira, novembro 14, 2013

14 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Sentir-se perdido e a raiar a paranóia era uma espécie de memória nublada, do adormecer.  Acordei com o nascer do sol. Curiosa percepção, de uns raios de luz a entrar quarto adentro. Um quarto que não reconheço como meu nem como abrigo.
Generosamente, admito, o Pierre deu-me guarida para a noite, um pouco como se na sua inexpressividade habitual estivesse enraizado o costume de ser hospitaleiro, de acolher um necessitado que é um foragido. Apre! Pensou, ao soerguer-se, é mesmo a mais estranha das ideias. Francisco, admoesto-me a mim mesmo, vê se te atinas e se acordas.

Há menos de uma semana, a Mariana estava morta no meu quarto sem perceber como nem porquê. Ando escondido e sou procurado, como naquelas histórias de policiais, crimes e mistério. Claro que outra (mais uma) morte no quarto do hotel seguinte, adensou a a estranheza e a anomalia.
Ontem, perdido por um, perdido por mil,  fui a um encontro pouco habitual (para não dizer bizarro), que isto de alguém ter poderes de adivinhação é mesmo recurso do desespero. E a mensagem foi ainda mais críptica do que se o André fosse a pitonisa de Delfos - bem vistas as coisas, ele levantou-se e foi-se embora - e eu só tinha chegado à parte de dizer que vira as minhas mãos cheias de sangue....
Ocorreu-me que não tinha prestado a devida atenção à mensagem que estava no cadáver da recepcionista - "a minha vida pela tua, uma vez mais". O singular do discurso, a minha, a tua: qual minha? qual tua? a dela? a minha? Parecia uma enotação de um gospel, "a minha vida pela tua" mas a expressão soava algo familiar. E estava lá o elemento da repetição, no "uma vez mais" - o contar os mortos, mais uma vez?

Ter feito o curso de história tem séria influência no meu modo de pensar pois desenvolvi a tendência de começar sempre as narrativas lá atrás. Onde penso que começaram. E nem sequer sou verdadeiramente historiador, por isso é uma verdadeira ironia maquiavélica, que esteja a narrar-me a história destes dias.
Saindo do quarto, hesito em que devo ocupar o dia, em segurança e, ao mesmo tempo, numa pesquisa que me ajude realmente a encontrar algumas respostas. Um computador, claro! Preciso de aceder a informação sobre esta ideia da troca de vidas, que aparece repetida e me incrimina de tal modo que pareço culpado por fugir e serei preso se me encontrarem.
- Bom dia, Pierre, - saudei-o ao entrar na cozinha. O cheiro a pão torrado foi consolador. Ele acenou-me de volta e perguntou:
- Bom dia, Francisco, pensaste no que vais fazer hoje?

A voz assim, seca e directa, fez-me lembrar os fragmentos da conversa telefónica que tinha ouvido na véspera, às escondidas. Esforço-me por me abstrair dessa rememoração ("o plano está a resultar na perfeição", "ele confia em mim e eu vou mantê-lo por perto", "só irá descobrir quando for tarde demais"....). E por um recentemente descoberto sentido de desconfiança ou de prudência, resolvo manter para mim o que pensara procurar.
- Tenho de aceder a um computador, ver se o caso aparece nas notícias, e como. Por acaso, podes-me emprestar o teu portátil?

Na verdade, poderia ter respondido, "tenho de ver se consigo decifrar a mensagem, o que é que significa "a minha vida pela tua, uma vez mais". Dás-me uma ajuda?". Ainda assim, e tendo tão poucos aliados (ou só este, aparentemente e por agora), não me tenho dado bem estes dias. Nunca pensei poder vir a ser o principal suspeito numa série de mortes.
Ele concordou com a cabeça e disse:
- Vou buscá-lo, deixei-o no quarto.
Mastiguei o pão devagar, com um sentido de urgência contida. Não tinha onde ir e nem me convinha pôr o nariz na rua.

E esquivo-me a olhar o meu colega, ciente de que os olhares transmitem mensagens, apreciam, analisam, dão, tiram. Tenho receio que no meu olhar, Pierre leia a confusão, a desconfiança; ou que perceba o escudo, triste metáfora de quem sabe que tem de se defender, mesmo que possa ser de inimigos imaginários. Ele regressou tranquilamente, de pasta na mão e poisou o portátil na mesa:
- Há comida no frigorífico. Volto à hora de jantar, se precisares de alguma coisa liga. Até logo.
Sózinho, abri o computador, procurei umas folhas de papel e lápis, preparei-me para a pesquisa. E escrevi "a minha vida pela tua".  O tempo escorreu e quase nem dei pela passagem das horas. A cozinha ficava nas traseiras da casa e os murmúrios da rua eram tranquilizadores. Procurei afanosamente indo de jornal em jornal, de ligação em ligação. A minha vida pela tua, my life for your life, once more; e notícias de homicídios, de eventos estranhos na cidade. Refiz os meus passos dos últimos dias, organizei o pensamento e desenhei uma estratégia. Enfim, gastei um dia, para decidir como agir nos dias seguintes.

Lucília Nunes

Almada

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quarta-feira, novembro 13, 2013

13 Novembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Paranóia! A palavra paranóia, está a ganhar poder dentro de mim, apoderando-se dos meus sentidos, dos meus pensamentos, a cada segundo. Começo a duvidar de mim, do Pierre, da empregada de limpeza do prédio do Pierre, até do jovem estudante que sai todos os dias com um par de livros debaixo do braço. De toda a gente! Mas é de mim que tenho mais medo... Terei um outro eu, um lado mau e maquiavélico, com uma vontade própria e incontrolável. Ou é algo mais complexo que isto?

A expressão "a única pessoa que confio é em mim próprio" por um lado cada vez faz mais sentido, por outro lado, será que posso confiar realmente em mim?

Vou voltar um pouco atrás, talvez escrever me ajude a encontrar respostas, respostas essas que preciso desesperadamente...

Hoje após reflectir e discutir com o Pierre bastante sobre o assunto, Pierre disponibilizou-se para ir ao hotel sozinho. Pediu-me que esperasse num café lá perto.

Voltou passado cerca de 30 minutos (que a mim me pareceram 30 horas) com uma cara que não deixava transparecer qualquer emoção ou sequer adivinhar qualquer pensamento.

Disse-me apenas que a polícia tinha o quarto sobre investigação, e que ninguém poderia pernoitar ou sequer entrar no quarto que serviu para o crime da jovem recepcionista...

Fomos de seguida conhecer a tal pessoa que ele achava que nos podia ajudar. Um amigo dele, André, que segundo ele, tem poderes de adivinhação. Nunca acreditei muito em "bruxarias" mas sem outras alternativas, decidi manter-me com um espírito aberto, até porque eu preciso de perceber o que se passa... Senão dou em doido...

Foi-me difícil descrever o pesadelo que assolou a minha vida, mas André pediu-me que fosse o mais pormenorizado possível para que me pudesse ajudar. Relatei os acontecimentos, ponto por ponto, até à parte em que falei nas minhas próprias mãos com sangue. Ele nesse momento pediu-me para parar. Levantou-se e disse que não tinha nada que nos pudesse ajudar... Eu insisti que apenas tinha contado a morte de Mariana e de Bruce e que havia mais, mas ele pediu a Pierre para nos irmos embora... Será que desconfia de mim? Será que tem motivos para isso?

Em desespero gritei: "Diga-me tudo o que sabe!", ao qual ele virou costas, não respondeu, e saiu da sala deixando a porta da rua aberta. A mensagem era bem clara... Vão-se embora.

Pierre saiu com a mesma expressão inexpressiva. Perguntei-lhe o que achava, ao que apenas encolheu os ombros. Não era de todo a reacção que esperava. Não insisti.

Chegando a casa de Pierre, fui tomar um duche (penso que foi a única coisa que gostei hoje).

Ao sair do duche encontrei Pierre a falar ao telefone no quarto com, o que me pareceu ser André, até pelo conteúdo da conversa...

Embora nunca tivesse feito isto, decidi ficar à escuta. Estava desesperado... Cada vez mais desconfiava de mim.

As palavras que ouvi foram as seguintes, ainda que sobre a forma de frases soltas:

"Sim, o plano está a resultar na perfeição."

"Começo a sentir algum receio."

"Adorei o acting."

"O gato era escusado, mas realmente há pessoas doentias. Assim 
foi mais dramático."

"A polícia tem-no como principal suspeito."

"Está descansado que ele confia em mim e eu vou mantê-lo por perto."

"Só irá descobrir quando for tarde de mais."

"Vai contar com a nossa ajuda."
...

Em quem posso confiar afinal? Será que fui eu que fiz tudo isto, ou será que estão apenas a querer que eu acredite nisso? Ajuda, no bom ou no mau sentido? Sinto-me tão perdido!.. 


Filipe Correia
Lagos


                                                                                                                      

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