30 Novembro 2013
Publicada por Um Dia à Vez
Não consigo dormir. Felizmente, a
claridade do luar lança uma cortina de luz que serpenteia displicentemente por
entre uma pequena janela, numa das paredes da minha cela. No estado de nervos
em que me encontro, neste momento escrever é como um oásis num deserto, pelo
que este foco de luz é tudo o que necessito para não me deixar ir abaixo.
Hoje o dia foi bastante banal. Ou pelo menos, dentro do que eu considero que seja banal num estabelecimento prisional. Acordei, fiquei a olhar pela janela, a cogitar sobre a minha situação, a planear, a desenhar mentalmente um itinerário caso ganhasse a minha liberdade de volta. Almoço. Cela. Matar tempos mortos. Meditar, pensar, ponderar… Pensei ontem que estava a afogar-me, e rio-me agora. Quem me dera ter a sanidade do dia anterior.
Hoje o dia foi bastante banal. Ou pelo menos, dentro do que eu considero que seja banal num estabelecimento prisional. Acordei, fiquei a olhar pela janela, a cogitar sobre a minha situação, a planear, a desenhar mentalmente um itinerário caso ganhasse a minha liberdade de volta. Almoço. Cela. Matar tempos mortos. Meditar, pensar, ponderar… Pensei ontem que estava a afogar-me, e rio-me agora. Quem me dera ter a sanidade do dia anterior.
Passo agora a explicar o que faz
com que a letra desta página esteja nitidamente tremida, tanto por a mão ainda
me trair, tanto pela pressa com que neste instante deslizo a ponta do lápis no
papel.
Assim que o dia terminou, do qual
apenas consigo recordar as frivolidades descritas no segundo parágrafo, as
luzes do corredor foram apagadas e chegou o momento dos reclusos repousarem.
Foi também o momento que me trouxe até este estado.
Tudo começou com um frio
estranho. Digo estranho porque não correspondeu, de todo, ao frio que é
expectável de uma noite de Novembro. Este frio penetrava nos ossos de um modo
que não era natural. É a melhor explicação que consigo oferecer, embora
reconheça que seja incrivelmente débil. Depois de me ter tapado com todos os
cobertores a que tinha acesso, senti que os ossos iam estalar. Tinha a sensação
de estar a dormir num congelador.
Foi então que ouvi passos no
corredor. Não estranhei nada ao ouvir os primeiros sons, pois assumi
automaticamente que se tratava de um guarda a fazer a sua ronda. Contudo, houve
algo que me despertou a atenção à medida que os passos ecoavam tenuemente no
chão. O som sugeria que alguém caminhava descalço. Seria algum recluso que se
escapava furtivamente? Mas porquê deixar os sapatos na cela? Estranhando o som,
sentei-me na cama.
Palavras não descrevem o que se
passou de seguida. As passadas, lentas mas certas, aproximava-se das grades da
minha divisão. Quem quer que fosse que atravessava o corredor ficaria dentro do
meu campo de visão. Todavia, os passos cessaram, tão abruptamente como
começaram. Recordo-me de ter sustido a respiração, pois fiquei com a sensação
de que a pessoa parara mesmo antes de passar pelas minhas grades.
Foi então que vi uma cabeça a
despontar, lenta e agonizantemente, junto do gradeamento. Primeiro vi uns
cabelos desgrenhados. Depois, uns olhos vazios e desprovidos de vida, cujo luar
reflectia doentiamente no negro devasso que me encarava. Finalmente, a boca. Os
lábios torcidos num meio-sorriso maligno, que representavam algo de muito
errado na ordem natural das coisas. Uma mão corroída segurou uma das barras de
metal que me protegia e Mariana, ou o que restava dela, lançou o seu corpo
contra as grades. Que visão dos infernos. Ela envergava ainda a mesma camisa
com que fora morta e penetrava-me com o seu olhar. Quis gritar, mas senti-me a
sufocar.
Quando me senti prestes a
desmaiar, aquela entidade esticou o braço e apontou para o lado esquerdo da
cela. Olhei instintivamente e vi que fios de sangue escorriam pela parede
branca. Meu Deus, queria tanto desmaiar, acabar com isto de uma vez. Vi
formarem-se palavras. O poema, o maldito poema uma vez mais. O poema que vi na
gruta… aquelas palavras que para mim eram já amaldiçoadas:
“Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,
Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,
E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!”
Quando me obriguei a olhar para
Mariana mais uma vez, ela havia sumido. Notei também que já não tinha frio.
Pelo contrário, estou agora cheio de calor e bastante transpirado. Ainda tremo
e tenho a respiração demasiado acelerada. O sangue também desapareceu logo da
parede, que voltava a repousar imaculada.
Não sei o que vi. Não sei sequer
se foi real. Mas desejo que tenha sido uma alucinação. No meu íntimo prefiro
estar a enlouquecer, do que a percepcionar manifestações de algo que não
deveria ter direito a existir.
Edgar
H.P. King
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