segunda-feira, dezembro 02, 2013

2 Dezembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Acordei sobressaltado, angustiado, aflito! Tinha um peso negro dentro de mim. Despertei ao mesmo tempo que num reflexo o meu tronco se levantava, e assim fiquei durante algumas horas enquanto tentava perceber o que se passava. Só consigo recordar fragmentos de um sonho: eu e a Mariana enquanto crianças, depois adolescentes, a nossa primeira vez. Os passeios com o meu pai, o carinho da minha mãe. O meu pai e a amante, o consentimento da minha mãe, o seu corpo a ser transportado para dentro de casa, o estalo da minha mãe. O período da faculdade, o Pierre, eu e o Pierre, o corpo nu do Pierre?! O calor da minha tia, o seu abraço. O meu pai à noite no meu quarto. A Mariana em Lisboa, a nossa noite, a Mariana morta. O hotel a arder. A caixa com terra e pedras – o que lhe aconteceu, onde a deixei? “A minha vida pela tua, uma vez mais.” Dor e prazer, amor e terror.

Sinto que há partes escondidas, como páginas rasgadas da minha memória, não só do que tem vindo a acontecer, não só deste sonho, mas também da minha vida. Sinto que está tudo dentro de mim, mas não consigo lá chegar. Pela primeira vez acredito trazer comigo as respostas a tudo. Este sonho, apesar de fragmentado e incompleto, foi também revelador, de uma forma que não consigo ainda bem desvendar.

Hoje tive a visita do meu novo advogado, o Dr. Júlio Valverde. Na verdade é um antigo amigo da minha família. Há anos que não me lembrava dele, mas agora que o reencontrei recordo-me vagamente da sua presença na minha infância, nas festas de família, julgo até que em férias de família. Era um grande amigo de longa data do meu pai e, de repente, saíu das nossas vidas. Enfim, contei-lhe o que me recordo: a noite com a Mariana, o hotel, os dias com o Pierre, até o período nos montes, tudo desde o primeiro dia até à minha decisão de voltar a casa e ser levado pela polícia. O Dr. Júlio (em tempos tio Júlio) provoca-me sensações contraditórias, um misto de reconforto, talvez por me fazer recordar tempos inocentes e felizes, e um misto de desconforto, sendo que deste não consigo descortinar a origem.

Cada vez mais convicto de que tenho que começar esta procura dentro de mim, decidi engolir o meu orgulho e ligar à minha mãe, pedindo-lhe ajuda. Pedi-lhe que me tentasse arranjar um psicólogo que me viesse visitar à prisão e me possa acompanhar. Não lhe expliquei bem a causa deste pedido, esta busca que quero iniciar. Afinal, depois de tudo o que me tem vindo a acontecer, a minha mãe também não estranhou. “Claro que sim, filho. Tudo o que te possa ajudar” – num tom distante, sofrido e ao mesmo tempo acolhedor.

Vou começar a registar todos os meus sonhos assim que acordar, por mais banais que possam parecer. Não quero voltar a perder nada do que o meu inconsciente me está a tentar dizer. Resta-me também esperar que a minha mãe encontre alguém que me possa ajudar. E que amanhã seja um dia melhor.


Inês Patrício
Setúbal

0 comentários: