quarta-feira, dezembro 04, 2013

4 Dezembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Passei grande parte do dia na enfermaria. Estou cansado e lento. E enjoado. Contei 7 comprimidos de cores diferentes que tomei todo o dia.  Ligaram-me ao soro, tenho uma veia azul saliente e dorida na mão com que escrevo.

É estranho – imagina-se que a prisão é um local de homens duros e calejados, habituados a tudo, capazes de enfrentar as situações mais extremas.  Mas é como uma aldeia, melhor, um prédio num bairro de classe média. Com as suas pequenas intrigas, os seus comodismos, as suas preocupações comezinhas – quem deixa a porta aberta, que decoração é mais apropriada, quem visita quem, quem liga a luz, quem faz barulho... 

Os “condóminos” queixaram-se do meu barulho às tantas da manhã e os guardas vieram. Lutei para defender o meu espaço, tentando explicar que não podiam abrir a cela, que ela ia entrar, que eles se tinham apoderado do seu corpo, que ela agora precisava do meu sangue...
Fui arrastado pelos corredores, uma injecção e apaguei.

Acordei com um enfermeiro a abanar-me. “Olhe lá, está acordado? Consegue levantar-se? Vamos lá!”. Meteu-me debaixo de um duche e ficou à minha espera.  “Tá tudo bem ai?” – não sentia o chão, a água, a cabeça estava vazia. Estava tudo bem. O enfermeiro segurou-me pelo braço, tinha uma grande tatuagem com letras retorcidas, tentei concentrar-me nas letras, mas ainda não via nada. Sentou-me numa cadeira à frente do médico. “Então diga lá...” Lembro-me de lhe contar: a meio da noite o frio intenso a subir pela espinha acima, o coração que batia tão forte que o podia ouvir, podia mesmo ouvir! E depois... Os passos no corredor, aquela respiração animal... a cabeça dela a espreitar nas grades, olhos vazios, rosto sem pinta de sangue, a boca retorcida a chamar por mim, o braço estendido por entre as grades, a força descomunal com que me pegou pelo pescoço e levantou do chão, puxando-me para si, para aqueles dentes esfomeados.  Com um pontapé tinha conseguido soltar-me. Mas a criatura estava enfurecida, batia com a cabeça nas grades e por entre os cabelos desgrenhados e uma massa branca que escorria do crânio, eu via o metal ceder... Desvairado, comecei a atirar com tods os objectos da cela contra as grades – os livros, o copo, o termos, a cadeira, a pequena mesa.
O
 médico escreveu durante muito tempo, “E há muito tempo que tem estes sonhos?”, “Não são...” Não valia a pena, calei-me. “Ouça, vou-lhe dar aqui uma coisa para dormir melhor. Faça exercício, homem, e há aí umas classes de carpintaria, tente fazer uma actividade, distrair a cabeça, ok?”.

Trouxeram-me para a cela. Tenho os livros rasgados e um pé da mesa partido.  Falei ao telefone com a minha mãe. “Vê lá que o teu amigo Pierre me ligo, todo preocupado contigo. Foi simpático da parte dele, não foi? Ofereceu-se para ajudar no que for preciso. Vê-se que gosta muito de ti. É bom termos amigos assim... e nestes momentos que se vê... Recomendou-me um psiquiatra, diz que é muito bom . É amigo do Pierre, não nos vai levar nada.  Amanhã  já vai aí falar contigo. No meio disto tudo, até temos sorte, não é?”

O enfermeiro veio agora entregar-me os comprimidos do médico. “Então, estamos finos? Tome lá da parte do doutor, é dois por dia, depois das refeições.” À saída deu-me um forte aperto de mão. A luz do corredor mesmo em cima das letras retorcidas da tatugem no seu braço: “A minha vida pela tua, uma vez mais”.


Cristina Borges,
Lisboa

0 comentários: