2 Novembro 2013
Publicada por Um Dia à Vez
Gostava de
poder começar o relato do dia de hoje dizendo que acordei com outro espírito,
que de repente os meus olhos viam o mundo com outra perspectiva, com mais
esperança, mais vontade. Não posso. O meu dia começou exactamente da mesma
forma, com pouca vontade de fazer algo, obrigando-me a por a pé.
Estava a tomar
o meu pequeno-almoço quando o telemóvel tocou, o nome no ecrã preparou-me para
mais uns momentos de sentimento de falhanço, de culpa. Não valia a pena
ignorar, não iria desistir. Suspirei e atendi.
“Bom dia. Ainda estás em casa? Queria que viesses à aldeia hoje, é o dia dos Fieis Defuntos.”
“Fazer o quê mãe? Isso não era ontem?”
A minha mãe suspira como quem diz sem paciência “pobre ignorância”. Mulher devota, desde sempre que tentou incutir na sua descendência o que acreditava ser a resposta para a vida, a crença em Deus. Não teve sucesso, quanto mais crescia menos me parecia verosímil tudo o que me tentava vender.
“Fazer o quê? Como é possível eu ter criado um filho com tão pouco respeito pelos seus pais. Por acaso tens algo melhor que fazer?”
Sentimento de falhanço …
“A mãe sabe que não. Mas não compreendo porque ainda insiste que eu vá ter consigo para estas situações.”
“ Francisco”, disse com muita calma, “se não o fazes pelo teu pai, fá-lo por mim.”
Não sabendo bem como, a minha mãe convenceu-me. Ou melhor, claro que sei, sentimento de culpa, mas não para o dia dos fiéis, iria amanhã, domingo. Já via o caminho para uma aldeia à beira-rio plantada, a aldeia das minhas férias de verão, a aldeia onde vivi as minhas primeiras paixonetas, a aldeia para onde a minha mãe, inexplicavelmente, decidira mudar-se quando se reformara.
Mas a forma em que esta aldeia mais me marcara vinha no formato do meu pai. O menino Joaquim nascido e criado em Caldas de Insalde, transformado em “O Senhor Doutor Joaquim”, o orgulho de toda a aldeia.
O meu pai
tinha sido o meu herói de infância. Tudo nele era heróico, a forma como
escrevia, falava, ria. Como pegava em mim e me atirava pelo ar. Como andava
pela aldeia e sabia exactamente quem tinham sido os donos de cada casa, a quem
pertencia cada campo. O entusiasmo a contar-me as histórias que lhe contaram a
ele. Acho que veio daí a minha paixão pelo passado, que me levou a tirar o
curso de História e depois me levou pelo caminho do desemprego.
No verão dos meus quinze anos, o meu pai começou a perder superpoderes. Como sempre, fomos passar o mês de Agosto à aldeia, mas o Doutor Joaquim já não tinha tempo para mim. Havia um outro “algo” a ser feito. Por várias vezes vi-o a sair da casa de uns vizinhos. Tinha a certeza: o meu pai tinha uma amante.
Com o regresso
à cidade, o pai passou a ir à aldeia constantemente, algo que não fazia antes.
E para piorar tudo, a minha mãe não parecia minimamente zangada com esta
situação. Preocupada com algo, mas não chateada. Acho que isso ainda me
revoltava mais.
A Quarta-feira, 19 de Novembro de 1995, cimentou o crescente vilão que o meu pai era para mim.
O telefone
tocou perto da meia-noite. A minha mãe atendeu e para além do “Estou sim”, a
única coisa que disse foi “Estou a caminho”. Veio espreitar ao meu quarto e
julgando-me a dormir, saiu sem dizer nada. Passadas três horas senti motores a
chegarem ao portão. O meu quarto no primeiro andar, permitiu-me um lugar de
bancada para tudo o que se passou de seguida.
De uma carrinha tiram uma maca, tapada com um lençol branco e onde reparo no que eu penso ser sangue. De um outro carro sai a minha mãe com o semblante mais sereno que uma Virgem Maria, acompanhada por uma outra mulher que lhe entrega um casaco e sem lhe olhar nos olhos, regressa ao interior do carro. A maca é levada para o interior da casa por dois homens, e um outro entrega uma caixa à minha mãe, abraça-a e depois junta-se à mulher no carro. Vão todos embora. Corri para a cama e sem saber o que fazer fiquei o mais paralisado que pude quando senti a porta abrir-se. Durante a noite, ouvi mobílias a serem mexidas, papeis a serem rasgados, telefonemas a serem feitos, barulhos que até hoje me perseguem.
Na manhã seguinte, a minha mãe acordou-me dizendo que me precisava falar comigo. O meu pai tinha voltado, tinha-se sentido mal e infelizmente tinha morrido de ataque cardíaco. “Compreendes, meu filho?”. Respondi na voz mais serena que consegui, “Sim mãe, compreendo. O pai foi morto na casa da amante e tu tiveste que o ir buscar”.
O estalo que levei ainda hoje me dói.
Cláudia F. Barreiro
Excelente! Muitos parabéns pela iniciativa. E Parabéns à Cláudia Barreiro por este magnífico texto!
ResponderEliminarObrigada :)
ResponderEliminarEstou ansiosa por ver a continuidade...
Amiga Cláudia gostei muito!
ResponderEliminarFico à espera da continuidade, quer da história quer da tua escrita!
Ehhh lá! Fiquei sem palavras. Está potente a narrativa. Parabéns Cláudia! Vamos lá ver o que se segue, depois desse grande estalo mental. :-)
ResponderEliminarGrazie mile ;)
ResponderEliminarGostei muito deste texto. Parabéns à autora :)
ResponderEliminar